Icem-se as bandeiras, porque hoje eu gosto de ti e posso gritá-lo.
Hoje posso amar-te sem pudor. Preto, branco, olhos rasgados... Icem-se as bandeiras porque hoje, se eu quiser, posso beijar uma mulher, e ainda que para os mais antiquados seja impensável, a verdade é que eu posso. Não é lindo?
Hoje eu posso ser livre. Genuinamente livre, porque há 46 anos atrás, das espingardas dos meus compatriotas caíam cravos. Cravos, meu povo! Não é lindo? Que gratidão imensa...
Hoje eu puxo uma cerveja, em calções e top, no bar, e não sou rigorosamente nada menos por isso. Oiço o meu avô falar-me com a voz trémula das suas reuniões secretas, no teatro. Do meu bisavô ter fugido para não ser mais um torturado pela PIDE... Da roupa que trazia vestida no dia 25 de Abril de 1974 e do vestido fluido que a minha mãe levava vestido. Fluido... Como a liberdade, sabem? Conseguem sentir as lágrimas de liberdade? Quem me dera que todos vós pudessem sentar-se com o meu avô Salvador e ouvir. E sentir o que ele me conta:
-Passou a Grândola Vila Morena e corremos todos para a Vila. Peguei na tua mãe, abracei-a e prometi-lhe que seria livre. De amar. De estar. De ser. De viver.
Conseguem sentir os arrepios? Não é lindo?
Imagino-a, a ela, pequenina. A olhar muito expectante sem saber o que se passava, com todos a correr entre lágrimas de alegria e gritos "Viva a Liberdade". Imagino-a no colo do meu avô, enganchada no seu pescoço, confusa por ver o pai em lágrimas e a mãe aos saltos de alegria, juntinha a eles.
O meu avô perdeu o medo de a filha ter de o perder, pela luta dele. Pela luta dum pai ao querer que uma filha viva uma vida sem opressão. Não imaginamos a dor que seria olhar para um serzinho indefeso- cheio de alegrias e sonhos corrompidos por um sistema- sair porta fora, para uma reunião no "teatro" para se informar duma revolução dos cravos, com medo de não voltar, ou não resultar... Que escolha tem um pai? Lutar por amor, ou aguentar a dor?
Icem-se as bandeiras porque eu sou mulher independente. Livre. Dona do meu nariz como mais ninguém.
Icem-se as bandeiras porque hoje o teu azul pode ser o meu verde e não serei condenada por isso. Icem-se as bandeiras, pelos nossos militares, pela nossa população resistente que hoje nos podem dar o privilégio de sermos livres. Não é lindo?
(Esta seria uma das suas datas preferidas... O quanto ela me falava deste dia. Do que se lembrava. Do cheirinho a flores e do barulho da rádio que ecoava por todo o lado. Hoje está viva em mim. Hoje sinto-a em mim...)
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