segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Carta a quem eu era quando deixei de ser.

Miúda, ela vai partir e tu vais deixar de ser filha. E eu quero-te avisar que ela vai partir esta noite. Não precisas de ir buscar o pijama a casa, para passares a noite no hospital, porque ela vai partir, e tu já o sentes. Ou melhor, precisas de ir sim a casa: conforta e prepara os teus avós, exatamente como fizeste.

Miúda, entranha bem aquele olhar que ela te vai dar quando fores a casa porque será o último.

-Mãe, se continuas a responder-me assim eu não venho aqui dormir, chata!- deste-lhe um sorriso malandro.

- Atreve-te!!!- dir-te-á ela com a sobrancelha arqueada, a comer o calippo desenfreada- Mas vai devagar filha, a mãe ‘tá mesmo bem, hoje. E traz-me mais um calippo- a meia hora que estiveres fora, ela vai estar a perguntar por ti, dir-te-ão mais tarde, por isso…Corre!

Miúda, corre… Sobe as escadas dos 6 pisos e corre; fecha a porta porque é agora. Faz tudo igual; deita-te com ela, fala-lhe ao ouvido e faz tudo igual. Ela ouve-te e sente-te. Prepara-te para não conseguires proteger o teu pai que assistirá ao momento de fim da (tua) vida. Irás sentir que falhaste e não conseguiste protegê-lo, mas não te preocupes, ele superará rápido.

“Mónica, ela soltou-me a mão!”- sim. Reage com mais calma e dá a outra mão à madrinha. Continua a beijar a mãe. Não faz mal que te caiam as lágrimas no rosto dela, só não a soltes para ir gritar com a enfermeira. Confia quando ela te diz “Mónica, ela não está em dor”. Confia! Vais entender meses depois que a dor física é apenas 1 item da dor total, e esse, foi manejado impecavelmente. Eu sei que não te parece, mas foi exatamente "como mandam os livros”…

Miúda, os sons, a falta de reação, o coração a parar, as lágrimas de vós 3, a impotência no olhar dos profissionais que te acompanharão nos últimos minutos… Será duro, mas deixa-me avisar-te, tu vais suportar melhor que ninguém.

-Lamento muito- dirá o médico, nos teus olhos, após verificar que não há batimento cardíaco. Miúda, esmurra o cacifo, pontapeia a cadeira, arranca os cobertores da maca e não oiças o "Moninha, tem calma" do teu pai. Grita. Tal como fizeste. Fizeste tudo bem! Mas aguenta-te, porque vai piorar.

Miúda, ainda serás a que irá suportar melhor do que ninguém; às vezes contrariada ou em ataques de fúria mas melhor do que ninguém, honrando a mãe, respeitando sempre a nossa Flor.

Miúda, abre os olhos. Por favor, abre os olhos. Vais cair com autênticos golpes de toda a parte e de quem menos esperas… Queria abraçar-te e poder dizer-te que VAIS ULTRAPASSAR (porque vais, foda-se) e que o teu único problema devia ser o luto (não será); o teu único problema devia ser teres perdido o sentido da tua vida, quando a vida dela parou… Mas apesar de não ir ser, eu prometo-te que no dia que eu te escrevo esta carta nada te quebrará, jamais.

Confia nas flores, são elas que guiam os teus passos; naquilo que o vento te diz ao ouvido; na tua intuição herdada pela mamã. Confia no processo e lembra-te que, mesmo que o mundo tenha desabado para ti, ela queria para ti o mundo. PARA TI! E só para ti.

Miúda, os sinais? Vais procurá-los em todo o lado e nada vais encontrar. Mas dizem que só quando deixas de os procurar é que os vês... Ainda assim, vais entender que o rumo da tua vida é que por muito que tenhas deixado de ser filha, a tua vida terá e será sempre (sobre) a MÃE.

Com amor, 

A Moninha que começou a ser quando ela deixou de estar.

PS- Gostava de te dizer que um ano depois, ficará mais fácil a aceitação de tudo, Moninha, mas não é verdade. A verdade é que te acostumas a tratar a dor por “tu”. Vocês agora são amigas e respeitam-se. E nos intermédios macabros da vida irás sobreviver até que isto seja de novo "sobre viver".

Carta a quem eu era quando deixei de ser.

Miúda, ela vai partir e tu vais deixar de ser filha. E eu quero-te avisar que ela vai partir esta noite. Não precisas de ir buscar o pijama ...